terça-feira, 4 de março de 2014

Capítulo 8 - Simplesmente Demi


~*~

Dias de tensão

EU: — Diga que vem!

Mal terminei o jantar e corri para falar com minha mãe. Estava desesperada para ouvir a voz dela e contar as novidades, inclusive sobre o convite de meu pai para que ela, meus avós e Selena viessem à Krósvia para a cerimônia, bláblá-blá. Já não suportava mais falar nisso.
Não foi um jantar totalmente desagradável, tampouco divertido. Depois do papo sobre o qual eu não queria falar, o assunto simplesmente não fluiu.
Conversamos um pouco sobre tia Marieva e eu aproveitei para elogiar meus priminhos. Mas meu cérebro insistia em me levar a um terreno perigoso, ou seja, ao que havia acontecido — ou quase — com Joe e eu em meu quarto, um pouco antes.
Eu ainda podia sentir minha pele formigando com a expectativa do contato e tenho certeza de que Joseph não ficara indiferente. Por mais que Laika estivesse ali, atracada com o pescoço dele, tinha havido um momento de atração entre nós.
Aliás, passava da hora de eu admitir, pelo menos para mim, que essa atração não era nova coisa nenhuma. Desde que eu pusera os olhos nele pela primeira vez, fora atraída como por um ímã.
Numa situação diferente, eu provavelmente estaria de olho em Joseph. Por exemplo: se estivéssemos no Brasil e eu fosse simplesmente Demetria Devonne Lovato e ele, um cara gostoso qualquer, sem nenhum parentesco com a nobreza, a chance de haver uma paquera entre nós seria bem grande. Não estou falando de namoro nem nada, mas de um paquera inocente.
Mas ali isso era impossível porque:

1º: Ele tinha namorada (e isso, por si só, já era empecilho mais que suficiente).
2º: Joe era enteado de meu pai. Ou seja, para todos os efeitos, éramos quase irmãos (eu ainda não tinha refletido por esse lado).
3º: Nick. Por mais que não fosse namoro, era alguma coisa.
4º: Eu não ficaria na Krósvia para sempre.

Ainda bem que eu não chegara a me apaixonar por Joe. Seria complicado... Nada de paixão. Nadinha. Zero...
Voltando à conversa com minha mãe:

MÃE: — Filha, eu gostaria muito, mas não sei se consigo deixar o buffet. É um período complicado.
EU (suplicando): — Mãe, por favor. São poucos dias. Você não pode deixar outra pessoa responsável pelos negócios?
MÃE: — Você sabe como são meus clientes. Gostam de me ver por perto. Mas vou dar um jeito, é claro.
EU: — Você acha que a vovó e o vovô viriam?
MÃE: — Não sei. Sua avó, talvez. Mas o papai não gosta de fazer longas viagens de avião. E também não fala inglês.
EU: — Puxa... Estou tão ansiosa, mãe. Precisando de um colinho. Já estou vendo minha vida de pernas para o ar. Quanto tempo você acha que a imprensa brasileira vai demorar para cair matando?
MÃE: — De verdade? Tempo nenhum. Assim que seu pai fizer o anúncio, aposto que os jornalistas vão fazer fila na porta do palácio. Sabe como é, né? Notícia nova, diferente, até meio romântica, se quer saber.
EU (suspirando): — E se eu estiver arrependida?
MÃE: — Não, você não está. Pode estar com medo da repercussão, mas não arrependida. De todo modo, quando a notícia ficar velha, todo mundo vai acabar esquecendo.
EU: — Espero que sim.
MÃE (mais animadinha): — E quanto ao resto? Como andam os passeios com o Joe?
EU (sentindo o rosto corar): — Legais.
MÃE: — Só isso? Legais?
EU: — Legais, diferentes, excitantes...
MÃE (cheia de malícia): — Excitantes, é? Como assim?
EU (reativa): — Ora, excitantes, emocionantes. Ah, mãe, você sabe que sempre vamos de moto. Isso é excitante. E também os lugares aonde a gente vai.
MÃE: — Sei.
EU: — É sério, tá? E não estou a fim de falar mais nisso.
MÃE: — Tudo bem. Só quero que você esteja feliz aí, aproveitando bastante.
EU (suspirando de novo): — Eu estou, mãe. De verdade. Só queria ter vocês perto de mim no dia da minha apresentação. Acho que vou suportar melhor.
MÃE: — Tá bom. Pode contar comigo. Dou um jeito por aqui, mas não vou te deixar na mão quando mais precisa de mim. Que tipo de mãe eu sou, afinal?
EU (exultante): — A mãe mais maravilhosa do mundo!

Os dias passaram voando. Sei que essa frase é um clichê barato, mas não inventaram nada melhor para traduzir a sensação de ver o tempo passar sem a gente perceber. Apesar de todos os novos passeios com Joe — que ficaram escassos depois de meu encontro com Laika —, da busca desenfreada pelo vestido perfeito — que acabou se convertendo em dois (mas isso é assunto para depois) — e dos preparativos sem-fim, tudo aconteceu muito depressa.
Contudo, foi mais fácil suportar o estresse pré-apresentação depois de saber que minha mãe, vovó e Selena estariam presentes. Como isso era uma coisa boa, esperar pelo grande dia não foi algo tão traumático.
Assim que convidei Selena, a menina só faltou pirar. Primeiro, teve medo de não poder ir por falta de grana. Foi então que Andrej anunciou que fazia questão de bancar a vinda de minhas convidadas. Mamãe recusou na mesma hora. Ela disse que jamais aceitaria viajar com o dinheiro de Andrej, nem que essa decisão lhe custasse a viagem. Vovó Sue fez coro a ela e também não aceitou a oferta de meu pai. Mas tenho a impressão de que, no fundo, ela não se importaria de aceitar. Mesmo assim, optou por dar apoio moral à filha.
Por outro lado, Selena não pensou duas vezes. E a justificativa dela era muito válida.
— Como eu não tenho dinheiro e meu pai disse que não pode abrir mão dessa quantia para uma viagem que ele considera supérflua, o jeito é aceitar a caridade do seu pai.
Nem era uma caridade. Andrej queria que eu ficasse feliz e acabou dando o jeito dele. Só quero esclarecer que o dinheiro das passagens de Selena não saiu dos cofres públicos. Sei que não mencionei isso antes, mas meu pai possui outras rendas, como imóveis alugados, ações na bolsa, essas coisas.
Apenas Selena ficaria hospedada no castelo.
Minha mãe queria manter distância para que ninguém pensasse que ela estava a fim de reviver os velhos tempos. Quando digo “ninguém”, refiro-me principalmente à imprensa. O último desejo dela seria as pessoas murmurando que a mãe da princesa estava de olho no trono do lado direito do rei. Mais uma vez, vovó a acompanhou.
Mas Selena era aguardada com as pompas e honras de uma personalidade. Dias antes de sua chegada, Irina mandou preparar um quarto especial para minha melhor amiga, com direito a lareira, closet e sacada. Pedi a Karenina que fizesse pão de queijo e também sua especialidade: struklji, rolinhos de farinha com recheio de carne, vegetais e queijo, uma iguaria típica da Eslovênia, país vizinho da Krósvia, no lado direito do mapa.
Mamãe e vovó fizeram reserva num hotel em Perla. Depois, fiquei sabendo que ficava próximo ao prédio de Joseph, onde, aliás, eu jamais estivera. E todas as três estavam prestes a chegar.
Queria ter ido buscá-las no aeroporto, mas Andrej achou melhor me manter em segurança durante o dia. A população não tinha noção do que seria anunciado mais tarde, mas já havia sido avisada sobre o pronunciamento do rei, que revelaria algo bombástico às 4h da tarde.
Sendo assim, de acordo com meu pai, quanto mais guardadinha dentro de casa eu ficasse, menores seriam as chances de algum curioso descobrir a verdade antes da hora.
Jorgensen acabou indo ao aeroporto sozinho, outra vez num carro alugado, para não levantar suspeitas. Escolhi como companhias, enquanto elas não chegavam, um livro, um roupão de fleece e meu travesseiro. Ou seja, fiquei quietinha em minha cama, aconchegada sob o edredom, lendo uma história bem light para jovens adultos, que me deixou concentrada e, ao mesmo tempo, relaxada.
As pessoas mais íntimas chegariam ao castelo por volta do meio-dia. Desse grupo, faziam parte meus tios e primos de Craiev, Joe e o primeiro-ministro da Krósvia — que era um grande amigo de Andrej —, Zlater Muriev, com sua esposa, Stephania. Ah, e, claro, minha mãe, vovó e Selena.
Almoçaríamos juntos à 1h30 da tarde, depois teríamos um tempo para nos trocar e então seguir em comboio para o Palácio de Perla.
Propositalmente, Laika não pertencia ao grupo de íntimos. Acredito que Irina teve grande influência nessa decisão e eu não pude — nem quis — fazer nada para mudar. Tampouco Joe pareceu chateado.
Sobre os dois vestidos, agora já posso explicar. É que à noite haveria um baile para convidados especiais, e Irina insistiu que eu não poderia usar a mesma roupa da cerimônia de apresentação. Por isso, fomos à caça de dois, o que se converteu numa jornada dificílima e estressante, pois nada do que eu gostava agradava Irina e vice-versa. Por fim, ela sugeriu que contratássemos um estilista, mas recusei. Gosto de comprar minhas roupas, de experimentá-las nas lojas, e não ficar esperando alguém confeccioná-las para mim. Dá muito trabalho.
Quando quase não havia mais esperanças, acabei encontrando na mesma butique os dois vestidos de uma só vez. Para a cerimônia, eu usaria um tubinho azul-marinho, justo — mas comportado —, tomara que caia, com um bolero de renda da mesma cor por cima. Irina sugeriu que eu prendesse apenas um dos lados do cabelo, mas que deixasse o restante solto, para “exibir minha beleza e exuberância”. Ah, tá!
Porém, à noite, o estilo mudaria totalmente. De tanto folhear as revistas de celebridades e visitar as lojas mais descoladas do país, concluí que os longos estavam com tudo, especialmente os com fendas até o meio de uma das coxas, sensação da temporada. Seguindo o conceito elegante-mas-sexy, meu coração quase parou assim que bati os olhos no vestido de meus sonhos: um longo rosê — contrariando a dispensável opinião de Laika de que minha pele não combinava com tons pastel — de uma seda puríssima, quase translúcido, com decote profundo na frente, ajustado na cintura por uma faixa do mesmo tecido, presa por um broche de cristais. A saia era reta, mas se abria gradualmente por causa da fenda na lateral esquerda. Maravilhoso! Minha mãe amaria, já que ela se ligava muito mais nessas coisas de moda do que eu. E ai de quem o achasse feio. Era da Dior Couture! Socorro! Eu não via a hora de colocá-lo novamente no corpo e desfilar com ele pelo salão.
Opa! Será que eu estava me tornando uma garota fútil?
O livro que eu lia já tinha passado da metade quando o telefone do quarto fez um barulho estridente. Pelo toque, não era uma chamada externa. Alguém de dentro do castelo queria falar comigo.
— Oi?
— Demi! Depressa! — exclamou Irina. — Elas chegaram!
Desci feito uma louca as escadas até o hall de entrada, esquecendo-me completamente de meus trajes — ou da falta deles. Mas, naquele momento, não importava se eu estivesse de biquíni ou enrolada numa toalha. Tudo o que eu mais desejava era ver as três mulheres mais importantes de minha vida: minha mãe, minha avó e minha melhor amiga.
Quando aterrissei no andar térreo do castelo, avistei as três, de boca aberta e olhos esbugalhados, mal segurando o choque por estarem diante de um lugar tão magnífico. Sorri, ao mesmo tempo em que as lágrimas embaçavam minha visão.
— Mãe! — berrei, saltando feito uma cabra para os braços dela.
As três, ao notarem minha presença, aproximaram-se de mim e nos unimos num abraço único e emocionado.
Nem reparei em quem estava na sala. Pouco me importava ser pega naquelas condições, desde que os braços de minhas queridas continuassem a meu redor. Como elas fizeram falta!
— Oh, meu amor! — disse vovó. — Que saudade!
Mamãe se afastou um pouco para analisar minha aparência. Pareceu gostar do que viu.
— Você está ótima! Corada, reluzente.
— É claro! — interrompeu Selena, cujas malas — mais de uma — estavam nas mãos de um Jorgensen aturdido. — Quem ficaria mal num lugar como este? Isso tudo parece um sonho, Demi!
— Vocês ainda não viram nada. Espero que dê tempo de mostrar todas as coisas lindas que encontrei por aqui — desejei. E então alguém tossiu.
Era meu pai, parado a certa distância, contemplando a cena do reencontro. A seu lado, a sempre fiel Irina.
— Espero que tenham feito uma boa viagem — disse ele, formal, mas em inglês, imaginando que todas eram fluentes naquele idioma. Mas depois relaxou. — E gostaria muito que ficassem à vontade para conhecer o que quiserem, dentro e fora do castelo.
Minha mãe balançou a cabeça, mas foi vovó quem respondeu, também em inglês (muito bom, por sinal):
— Obrigada, Sua Majestade. O senhor é muito gentil. E estou feliz porque vejo que tem cuidado muito bem da minha neta.
— Poderia estar fazendo melhor — Andrej retrucou. — Se tivesse um pouco mais de tempo. A Demi fica praticamente por conta da Irina e do meu enteado, o Joe.
Selena fez uma cara safada ao escutar o nome Joe.
— E, por falar em Irina, esta é a responsável por tudo isso aqui hoje. — Andrej empurrou-a de leve em nossa direção, fazendo-a corar de prazer.
Se havia uma pessoa que adorava ser reconhecida como eficiente, essa pessoa se chamava Irina.
— Ela é meu braço direito em assuntos domésticos — continuou ele. — E também uma fã de carteirinha da nossa Demi.
Corei com o emprego do pronome “nossa”.
Soou tão afetuoso.
— E minha grande amiga — concluí, segurando as mãos dela, de forma a retribuir tudo o que vinha fazendo por mim.
Houve um instante de cumprimentos e trocas de beijinhos no rosto, gesto que nós, mineiros, não titubeamos em utilizar. Notei que Irina ficou toda vermelha com tanta demonstração de afeto, coisa com a qual ela não estava acostumada. Outro dia, eu perguntara a ela sobre sua vida amorosa e ganhara uma resposta breve, sem direito a réplicas:
— Não tenho tempo para isso.
Mas, não sei, não. Ficara a impressão de que Irina tinha uma quedinha por meu pai. E ele, por viver atolado em trabalho até o pescoço, nunca se permitira perceber os sentimentos da moça.
Tadinha... Até que os dois fariam um casal bonito.
Andrej levou as visitantes para o salão de recepção, onde Karenina lhes serviu um lanche de primeira. Havia estrelas nos olhos de cada uma e essa aprovação delas de “minha vida lado B” me fez muito bem.
— Daqui a pouco chegam os demais convidados para o almoço — anunciou Andrej. — Dianna, acho que você vai gostar de rever minha irmã, Marieva. Lembra dela?
— É claro. Como não? Parece que nos encontramos só uma vez, mas gostei dela.
Graças a Deus não foi estranho para os dois iniciar uma conversa despretensiosa. Depois dessa, todo mundo no ambiente deu uma relaxada. Até que Joseph apareceu, de supetão como sempre, e nos presenteou com sua presença marcante. Fiquei uns cinco segundos sem respirar, cada vez mais ligada à existência dele.
— Olá para todos — cumprimentou despojadamente, mas endireitou o corpo assim que viu minhas convidadas do Brasil. — Oi. Desculpem. — Ficou desconcertado. Uma gracinha.
— Joe, que bom que chegou! — disse Andrej. — Estas são Dianna, dona Sue Hart, e Selena, mãe, avó e melhor amiga da Demi.
— Só Sue, por favor — retrucou vovó.
Joe se dirigiu a elas e cumprimentou uma a uma com um aperto de mão. Fingi que não vi, mas Selena estava prestes a fazer algum comentário, um daqueles bem ambíguos, só para ver minha reação.
— Chegaram agora? — Joe perguntou, educado, mas de olho em mim. Engraçado: ele parecia estar segurando o riso, como se estivesse olhando para um palhaço ou coisa parecida.
— Sim. Faz pouco tempo — respondeu Selena, analisando nossas reações.
— E devem ter pegado a Demi de surpresa, né? Já que ela nem teve tempo de vestir uma roupa.
Olhei para mim devagar. Já tinha até me esquecido de que usava meu roupão verde-água com bolinhas lilás, de fleece. Macio e confortável, mas ridículo. Ai, que vergonha!
Todos riram, menos eu, é claro, que estava prestes a correr dali. Disparei a gaguejar:
— A-cho que vo-ou sub-bir para me tr-trocar.
— Vou com você! — E tinha jeito de Selena não se prontificar a me acompanhar? Eu já podia até escutar as engrenagens do cérebro dela fazendo barulho.
Acabei ajudando-a com as malas. Pelo jeito, ela pretendia passar mais do que um feriado prolongado na Krósvia.
Fomos direto para meu quarto e prometi leva-la ao dela mais tarde.
— Nossa, Demi! Que lugar é este?! Você tem vivido bem, hein, garota?
— Não é? Às vezes, eu penso: pra que tudo isso? Mas acho que vida de gente importante é assim mesmo — justifiquei-me de dentro do closet, onde aproveitei para escolher a roupa que usaria no almoço.
Selena pôs-se a passear pelo quarto, absorvendo os detalhes feito Hercule Poirot à procura de provas criminais nos livros da Agatha Christie.
— Nunca imaginei que um dia fosse entrar num castelo como este — observou ela. — Muito menos que seria a melhor amiga da princesa.
— É inacreditável mesmo. — Concordei por concordar, porque a essa altura minha ficha já havia caído havia muito tempo.
— E você é uma sortuda com S maiúsculo — continuou Selena. — Além de tudo isto — ela fez um movimento com os braços, como se estivesse abrangendo tudo ao redor —, ainda tem o Joe. Por que você nunca o descreveu direito para mim?
— Peraí. Vamos por partes. — Saí do closet com o zíper da saia aberto. — Eu não tenho o Joe. Isso é coisa da sua cabeça. Além do mais, como assim descrevê-lo? Pelo que me consta, eu mencionei todos os detalhes importantes.
— Por acaso você me informou que ele era lindo e charmoso e tinha os olhos mais verdes e penetrantes do mundo?
— Não, mas fui bem sincera ao falar sobre a implicância dele comigo e sobre como os tais olhos verdes penetrantes só sabiam me fuzilar no princípio. Sem mencionar a desconfiança, lembra?
Consegui subir o zíper e ajeitar a saia sobre a blusa de seda. Voltei para o closet atrás dos sapatos.
— Demi, eu queria detalhes que você deixou de lado, acho que de propósito. Pode confessar que tentou guardar esse tesouro só para si. Eu não ligo.
— Fala sério, Selena! — Dei meia-volta, com os dois sapatos nas mãos. — Você enlouqueceu. Se eu não te descrevi o Joe é porque não era importante, tá legal? Nem reparei direito, se quer saber.
Levei o maior susto com a gargalhada descontrolada que Selena soltou.
— Ah, claro, a senhorita não reparou! Então, deve ter sido outra pessoa que o chamou de mauricinho gostosão.
Não acreditei que ela se lembrava disso!
— Isso foi abrangente, Selena. Não foi uma declaração nem nada — expliquei, sabendo que a desculpa não colou.
— Entendo. Realmente, o adjetivo gostosão abrange muitas coisas mesmo. — Que raiva! Selena não queria deixar isso quieto. — E define bem o nosso Joe. Porque ele é isso mesmo, um gostosão. Mas, quanto ao mauricinho, sou obrigada a discordar de você.
Joguei-me na cama, sentindo-me meio derrotada. Enfiei os saltos nos pés e encarei minha amiga.
— Tudo bem, Selena. Eu me rendo. Admito que o Joe é um gato, que mexe com meus nervos de um jeito inédito pra mim.
Ela levantou as sobrancelhas, como se dissesse “não falei?”.
— Mas nada disso importa. O Joe é um cara comprometido. E enteado do meu pai — acrescentei depressa. — Ou seja, é quase meu irmão.
Agora, sim, a gargalhada me deu medo. Foi igual à de um vilão psicótico.
— Conta outra, Demetria! Quase irmãos...
É sempre assim. Quando Selena está a fim de me enfezar, ela me chama de Demetria. Todo mundo sabe que não gosto de ser chamada assim.
— Olha, Selena. Não sei por que estamos perdendo tempo discutindo esse assunto. O Joe e eu somos duas pessoas convivendo uma com a outra por obrigação, pela situação. Não fosse isso, jamais teríamos nos conhecido, ou talvez sim, mas não seria nada de mais. E não é, mesmo agora.
Daqui a uns meses eu volto para o Brasil e fim.
— Se você está dizendo. — Selena deu de ombros. — Mas eu particularmente penso...
— Pensa coisa nenhuma — cortei-a. — Vamos, venha me ajudar com a maquiagem. Daqui a pouco precisamos descer e não quero aparecer de cara limpa.
— Uau! E depois você diz que é indiferente ao “mauricinho gostosão”. — Selena fez sinal de aspas no ar.
— Cala a boca!
E acabei ganhando mais uma sessão de gargalhadas.
Eu deveria estar histérica. Mas, estranhamente, me sentia bem. Como tudo transcorreu na santa paz durante o almoço, presumi que os demais momentos daquele dia interminável também seriam tranquilos.
Selena não falou mais sobre Joseph. De vez em quando, ela desviava a atenção para ele e ficava babando como uma tiete diante do ídolo.
Não fiquei com raiva nem nada, só achei meio ridículo.
Mamãe e vovó engataram uma conversa animada com tia Marieva, enquanto as crianças me rodearam para contar as novidades. A mais impressionante de todas foi que Giovana perdera seu primeiro dente de leite. Ela esticou os lábios para me mostrar a janelinha com um orgulho muito pouco disfarçado.
Zlater e Stephania Muriev demonstraram ser um casal simpático. Participaram das conversas como se fossem gente de casa, ignorando solenemente o assunto política. Achei essa atitude excelente, e contou pontos para os dois.
Joe tentou chamar minha atenção o tempo todo. Mas decidi ignorá-lo — 1, por causa da história do roupão, e, 2, devido às minhas reações nada naturais diante dele. E olhe que ele utilizou várias abordagens: fez piada com meu medo de andar de moto, fofocou que eu era impressionável em se tratando de histórias antigas, contou que eu levava jeito na cozinha — o que deixou minha mãe toda orgulhosa. Por fim, deu um chute em minha canela e eu juro que quase reclamei em voz alta, bem assim:
— Pai, o Joe me chutou!
Só que não fiz nada disso, é óbvio.
Quando o almoço terminou, despedi-me apressadamente de todos, pois Irina anunciou em alto e bom som que Virna, minha primeira e única manicure na Krósvia, estava me aguardando no quarto.
Mamãe e vovó também se despediram e foram levadas ao hotel para um descanso rápido. Elas acompanhariam a cerimônia de apresentação no Palácio de Perla e seriam levadas até lá por Jorgensen, que estava por conta delas. Não foi fácil separar nós três. Desejava mais um tempo de mimos e paparicos. Por outro lado, sabia que a ocasião exigia paciência. Depois da apresentação, teríamos mais liberdade.
Virna caprichou na produção. Agora já expert nas técnicas brasileiras de manicure e pedicure, fez um trabalho perfeito em minhas unhas. Escolhi vermelho vivo para as mãos e os pés. Quem sabe a cor desviasse a atenção de cima de mim? Quanto menos pessoas ficassem me encarando, melhor seria para meu coração descompassado.
Unhas feitas, hora do cabelo. Eis que surgiu na minha frente a figura mais exótica da face da Terra para “dar um up” em meu visual. Nome: Patrick. Gênero: duvidoso. Simultaneamente batendo palmas e estalando os dedos, Patrick invadiu meu quarto agarrado numa maleta pink e falando pelos cotovelos. Em krosvi.
— Ei! — praticamente tive que gritar para ser ouvida. — Em inglês, por favor.
Patrick arregalou os olhos — muito bem delineados de lápis preto — e abriu a boca. Mas de lá não saiu mais nenhuma palavra.
— Oh-oh — disse eu. Pelo jeito, ele não falava nem entendia nada daquela língua. E agora?
I don’t speak English — alegou, num inglês muito ruim.
And I don’t speak Krosvi — retruquei, exasperada. Como é que ficaria meu cabelo se nós não conseguíamos entender a língua um do outro?
Na certa, se eu pedisse para deixar liso, Patrick acabaria fazendo um permanente. Levantei as duas mãos para ele, fazendo um gesto para que esperasse. Recorri a Irina, que teria que dar uma de intérprete. Quem mandou contratar um cabeleireiro com o qual eu não conseguia me comunicar?
Resolvida a questão, deixei que ele trabalhasse em minhas madeixas. Até que a figura tinha dedos de anjo, pois fui ficando grogue de sono enquanto Patrick mexia para lá e para cá nas minhas mechas.
— Ele está dizendo que seus cabelos são muito sedosos, Demi. — Irina me tirou do torpor traduzindo a frase de Patrick.
— O que ele não deve estar querendo dizer em voz alta é que esses meus cabelos são teimosos como um cavalo selvagem. E não traduza isso! — ordenei. — Verdade. Posso ter cabelo liso, mas não é nada fácil lidar com ele.
Por fim, tive que admitir que o resultado ficou muito bacana. Patrick fez como Irina sugeriu, prendendo só um dos lados com grampos. Em cima deles, tanto para escondê-los como para dar um charme, colocou um prendedor bonito, incrustrado de minúsculas estrelas de cristal.
— Patrick está dizendo que a cor dos seus cabelos é bonita. — Outra tradução feita por Irina. — E que, se você quiser clareá-los mais um pouco, pode procurá-lo. Ele terá o maior prazer de se tornar o hair stylist oficial da princesa Demi da Krósvia.
Revirei os olhos, achando a oferta uma graça.
Clarear os cabelos? Quem sabe?
Da maquiagem eu mesma cuidei, pois já estava acostumada. Nunca saía à noite sem maquiagem em BH e, de dia, estava sempre de gloss, pelo menos.
Assim que me olhei no espelho de corpo inteiro de meu closet e constatei que não faltava mais nada, suspirei. A sorte estava lançada. Em poucos minutos, eu deixaria de ser simplesmente Demetria Devonne Lovato para me tornar algo próximo a uma celebridade.
Soube que a imprensa brasileira invadiu Perla em peso, mesmo sem saber absolutamente nada sobre mim. Mas, como a assessoria de imprensa do governo soltara uma nota informando que a notícia que o rei Andrej daria naquela tarde dizia respeito ao Brasil também, os jornalistas não ficaram parados, esperando para ver. Acamparam no pátio do Palácio de Perla com câmeras e microfones e lá ficaram o dia todo.
Uma leve batida na porta me provocou um sobressalto. Pensei logo em Joseph, mas ele jamais batia. Entrava de uma vez, com ou sem autorização. Já vacinada contra suas invasões, preferi atender pessoalmente, em vez de mandar entrar.
— Olá! — Era meu pai. — Como está esse coração?
Abri caminho para ele e então vi seus trajes. Andrej estava alinhadíssimo, num fraque impecável, talvez até demais para o horário. Mas, como não entendo muito de etiqueta, nem sei se tinha ou não razão quanto a isso.
— Batendo acelerado — confessei.
Ele me olhou com aprovação.
— Você está linda. Parece uma princesa.
Sorrimos. Ele estava fazendo piada, embora de uma forma bastante sutil. A cara de Andrej.
— Queria garantir a você que será rápido, que você não ficará exposta demais — disse, com uma expressão carregada de ternura. — Que as pessoas não atormentarão você...
Balancei a cabeça, compreensiva.
— Mas eu não posso... — meu pai assumiu, por fim. Deu um longo suspiro, que depois se transformou num sorriso consolador. — Só quero deixar as coisas mais confortáveis, se é que tem jeito. Não haverá coroação, não agora. Príncipes e princesas não precisam ser coroados para serem reconhecidos como herdeiros do trono. Mas, no seu caso, faço questão disso... caso você decida viver aqui para sempre.
Uma camada de ar gelado percorreu minha coluna vertebral. Achei que já tinha deixado bem claro que voltaria para o Brasil, independentemente de qualquer coisa.
Parece que Andrej leu meus pensamentos, pois tratou de esclarecer:
— Não estou exigindo que more na Krósvia, que deixe o Brasil de vez. É só um desejo meu muito, muito forte.
Assenti. E ele voltou a pisar em terreno sólido.
— Vou ficar do seu lado o tempo todo. Você não precisa dizer nada, se preferir assim.
— Prefiro — concordei mais que depressa.
— Só lhe peço um único favor.
— Pode pedir. — Senti que era necessário abrir a guarda. Esse pai era mais do que eu merecia.
Andrej enfiou a mão no bolso do paletó e retirou uma caixinha azul. Fiquei olhando para ela, sem entender. Ele me daria uma joia?
Ao abrir a embalagem, apareceu um colar, que eu julguei ser de ouro branco. Na verdade, era uma correntinha prateada, muito fina e delicada, com um pingente brilhante no formato de um botão de rosa.
— Este diamante pertenceu à minha mãe, sua avó Andrina. — Diamante! E eu pensando que fosse, no máximo, um cristal Swarovski. — Quando me casei, ela o deu de presente para Elena, esperando que um dia tivéssemos uma filha que herdasse a joia. Quero que a use hoje.
Andrej ficou atrás de mim e colocou o colar em meu pescoço. Instintivamente, toquei o pingente. Tão lindo!
— Elena morreu sem saber sobre você. Mas acredito que, se estivesse aqui, faria o que estou fazendo agora, e até melhor, Demi. Ela era uma pessoa maravilhosa e teria amado você tanto quanto eu.
Senti lágrimas formando-se em meus olhos, mas eu não choraria. Por mim, por meu pai, por tudo, ficaria firme até o fim.
— É lindo — murmurei. E o abracei em seguida. — Obrigada por tudo. Vou fazer meu melhor. Prometo, papai.
E essa foi a primeira vez que chamei Andrej de pai. Deliberadamente.
O rosto dele adquiriu uma expressão de realização, como se aquela simples palavra fosse a mais bonita e importante do mundo. Naquele momento, ela era, sim. Pelo menos para nós.