sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Capítulo XXI e XXII


The Fault In Our Stars

O Joseph Jonas morreu oito dias depois do seu pré-enterro, no Memorial, na UTI, quando o câncer, que era feito dele, finalmente parou seu coração, que também era feito dele. Ele estava com a mãe, o pai e as irmãs. A mãe do Joe me ligou às três e meia da madrugada. Eu já sabia, obviamente, que ele estava para partir. Tinha falado com o pai dele antes de dormir, e ele me disse: “É possível que não passe de hoje”, mas, ainda assim, quando peguei o celular da mesa de cabeceira e vi Mãe do Joe na identificação da chamada, tudo dentro de mim desmoronou. Ela só chorava do outro lado da linha, e me disse que sentia muito, eu disse que sentia muito também, e ela me contou que ele havia ficado inconsciente por algumas horas antes de morrer.
Meus pais entraram no meu quarto nessa hora, me olhando na expectativa, e eu simplesmente assenti com a cabeça. Eles se abraçaram, sentindo, tenho certeza, o terror harmônico que viria direcionado especificamente para eles dali a algum tempo.
Liguei para o Nicholas, que xingou a vida, o universo e até o próprio Deus, e perguntou onde estavam os raios dos troféus para se quebrar quando mais se precisava deles. Foi então que me dei conta de que não havia mais ninguém para quem ligar, o que era muito triste. A única pessoa com quem eu queria falar sobre a morte do Joseph Jonas era o Joseph Jonas. Meus pais ficaram comigo no quarto por uma eternidade, até quando já era de manhã e o papai finalmente perguntou:
— Você quer ficar sozinha?
Eu fiz que sim com a cabeça e a mamãe completou:
— Estaremos logo ali atrás da porta.
E eu pensei: não duvido nada.

* * *

Foi insuportável. A coisa toda. Cada segundo pior que o anterior. Eu só ficava pensando em ligar para ele, tentando imaginar o que aconteceria, se alguém atenderia o celular. Nas últimas semanas, nós nos limitamos a passar o nosso tempo juntos relembrando o passado, mas isso não significava mais nada: o prazer de lembrar tinha sido tirado de mim, porque não havia mais ninguém com quem compartilhar as lembranças. Parecia que a perda do colembrador representava a perda da própria memória, como se as coisas que tínhamos feito juntos fossem menos reais e importantes do que eram algumas horas antes.
Quando você chega à Emergência de um hospital, uma das primeiras coisas que eles pedem é que você dê uma nota para a sua dor numa escala de um a dez. A partir daí eles decidem que medicamentos prescrever e a velocidade com que têm de ser administrados. Passei por essa situação centenas de vezes no decorrer dos anos, e me lembro de uma vez, logo no início, em que eu não estava conseguindo respirar e parecia que meu peito pegava fogo, as chamas lambendo meu tórax por dentro, tentando encontrar um jeito de sair e queimar o lado de fora, e meus pais me levaram para a Emergência. Uma enfermeira me perguntou sobre a dor e eu não conseguia nem falar, então mostrei nove dedos.
Depois, quando eles já tinham me dado alguma coisa, a enfermeira voltou e ficou meio que acariciando minha mão enquanto media a minha pressão arterial, então disse: “Sabe como eu sei que você é guerreira? Você chamou um dez de nove.”
Mas não foi exatamente o que aconteceu. Eu chamei aquilo de nove porque estava poupando o meu dez. E aqui estava ele, o grande e terrível dez me açoitando sem parar, e eu ali sozinha, deitada na minha cama, olhando fixamente para o teto, as ondas me jogando de encontro às pedras e depois me puxando de volta para o mar a fim de poderem me lançar mais uma vez na face chanfrada do penhasco, me abandonando na água, boiando, o rosto virado para cima sem me afogar.
Acabei ligando para ele. O telefone tocou cinco vezes e a caixa postal atendeu. “Esta é a caixa postal do Joseph Jonas”, ele disse, a voz de clarim pela qual eu tinha me apaixonado. “Deixe uma mensagem.” E o bipe. O silêncio na linha era muito horripilante. Eu só queria voltar com ele para aquela terceira dimensão secreta e pós-terrestre que visitávamos quando falávamos ao telefone. Esperei por aquele sentimento, mas não veio: o silêncio na linha não me trouxe nenhum conforto, e, por fim, desliguei.
Peguei meu laptop, que estava debaixo da cama, apertei o botão de ligar e fui direto no perfil dele, onde as mensagens de pêsames já inundavam o mural. A mais recente dizia:
Eu te amo, irmão. Te vejo do outro lado.
…Escrita por alguém de quem eu nunca tinha ouvido falar. Na verdade, quase todos os posts no mural dele, que chegavam quase na mesma velocidade que eu levava para acabar de ler cada um, foram escritos por pessoas que não conheci e das quais ele nunca tinha falado, pessoas que estavam exaltando as diversas virtudes dele agora, depois de morto, mesmo eu tendo certeza de que não viam o Joe havia vários meses e nem tinham feito qualquer esforço para visitá-lo. Fiquei tentando imaginar se meu mural ficaria assim quando eu morresse, ou se eu já tinha ficado longe da escola e da vida tempo suficiente para escapar da memorialização generalizada. Continuei lendo.

Já sinto saudade de você, irmão.
Eu te amo, Joseph.
Deus te abençoe e te guarde.
Você vai viver para sempre em nossos corações, grande.

(Essa, em particular, me irritou, porque implicava a imortalidade daqueles que ficaram para trás: você vai viver para sempre na minha memória, porque eu vou viver para sempre! EU SOU SEU DEUS AGORA, GAROTO MORTO! EU POSSUO VOCÊ! Achar que você não vai morrer é, também, mais um efeito colateral de se estar morrendo.)

Você sempre foi um amigo tão legal que sinto muito por não ter te visto mais depois que saiu da escola, irmão. Aposto que já está batendo uma bola no paraíso.

Imaginei qual seria a análise do Joseph Jonas àquele comentário. Se estou jogando basquete no paraíso, isso implica a existência física de um paraíso contendo bolas de basquete físicas? Quem faz as bolas de basquete em questão? Existem almas menos afortunadas no paraíso que trabalham numa fábrica de bolas de basquete celestial para que eu possa jogar? Ou será que foi um Deus onipotente que criou as bolas de basquete a partir do vácuo no espaço? Este paraíso fica localizado em algum tipo de universo não observável no qual as leis da física não se aplicam? Caso isso seja verdade, por que raios eu estaria jogando basquete quando poderia estar voando, lendo, admirando pessoas bonitas ou fazendo qualquer outra coisa de que realmente gosto? É quase como se o modo como você imagina meu “eu” morto dissesse mais sobre você do que sobre a pessoa que eu era ou sobre o que quer que eu seja agora.

* * *

Os pais dele ligaram por volta do meio-dia para dizer que o enterro estava marcado para dali a cinco dias, no sábado. Imaginei uma igreja cheia de pessoas que achavam que ele gostava de basquete e quis vomitar, mas sabia que precisava ir, já que teria de falar, e tudo mais. Quando desliguei o telefone, voltei a ler o mural:
Acabei de saber que o Joe Jonas morreu depois de uma longa batalha contra o câncer.
Descanse em paz, cara.

Eu sabia que aquelas pessoas estavam sinceramente tristes e que eu não estava com raiva delas de verdade. Estava com raiva era do universo.
Mesmo assim, aquilo me deixou furiosa: você ganha todos esses amigos justo quando não precisa mais. Escrevi um comentário àquele post:

Nós vivemos num universo dedicado à criação e à erradicação da consciência. Joseph Jonas não morreu depois de uma longa batalha contra o câncer. Ele morreu depois de uma longa batalha contra a consciência humana, uma vítima — como você será — da necessidade do universo de fazer e desfazer tudo o que é possível.

Postei aquilo e esperei que alguém respondesse, atualizando a página várias vezes. Nada. Meu comentário se perdeu na nevasca dos novos posts. Todo mundo ia sentir muita falta dele. Todos estavam rezando pela família dele. Eu me lembrei da carta do Van Houten: A escrita não ressuscita. Ela enterra.

* * *

Depois de um tempo, fui para a sala de estar a fim de me sentar com meus pais e ver TV. Não sabia dizer que programa era aquele, mas, num determinado momento, minha mãe disse:
— Demetria, há alguma coisa que possamos fazer por você? — Só balancei a cabeça. E comecei a chorar de novo. — O que podemos fazer? — ela insistiu.
Eu dei de ombros.
Mas ela continuou perguntando, como se houvesse algo que pudesse fazer, até que, por fim, eu meio que me arrastei pelo sofá para o colo dela, e meu pai chegou mais para perto e segurou minhas pernas com firmeza. Eu abracei minha mãe pela cintura e eles ficaram me segurando horas enquanto a maré se avolumava sobre mim.

Capítulo XXII

Assim que chegamos lá eu me sentei no fundo da sala de visitas da igreja, um cômodo pequeno de paredes de pedra ao lado do santuário na igreja do Coração Literal de Jesus. Havia mais ou menos umas oitenta cadeiras dispostas pela sala, que estava dois terços cheia, mas a sensação era de que estava um terço vazia.
Por um tempo, fiquei só olhando as pessoas indo até o caixão em cima de um tipo de carrinho coberto com um pano roxo. Todas aquelas pessoas que eu nunca tinha visto se ajoelhavam ao lado dele ou paravam ao lado dele e o olhavam por alguns instantes, umas chorando, outras dizendo alguma coisa, e então todas colocavam a mão no caixão, em vez de nele, porque ninguém quer tocar os mortos.
A mãe e o pai do Joe estavam em pé ao lado do caixão, abraçando as pessoas conforme iam passando, mas aí me viram, sorriram e vieram até mim. Eu me levantei e abracei primeiro o pai, depois a mãe, que me deu um abraço bem forte, como o Joe costumava fazer, apertando minhas clavículas. Os dois pareciam muito envelhecidos — os olhos fundos, a pele flácida dos rostos exaustos. Eles também haviam chegado ao fim de uma corrida com obstáculos.
— Ele amava tanto você… — a mãe do Joe disse. — Ele a amava de verdade. Não era um amor qualquer de adolescente — ela acrescentou, como se eu não soubesse.
— Ele também amava muito você — falei baixinho. É difícil explicar, mas ao falar com os pais do Joe parecia que eu estava dando uma facada neles e eles, em mim. — Sinto muito — eu disse.
E então os pais dele foram falar com os meus pais, a conversa limitada a gestos de cabeça e lábios apertados. Olhei para o caixão e vi que não havia ninguém em volta, então decidi andar até lá. Tirei a cânula das narinas e levantei o cilindro de oxigênio, entregando-o para o papai. Eu queria que fôssemos só eu e só ele. Peguei minha bolsinha de mão e andei pelo corredor criado pelas fileiras de cadeiras.
A caminhada parecia longa, mas fiquei dizendo aos meus pulmões para se comportarem, que eles eram fortes, que podiam fazer aquilo. Pude ver o Joe ao me aproximar do caixão: o cabelo estava perfeitamente repartido do lado esquerdo, de um jeito que ele teria achado absolutamente horrível, e seu rosto parecia plastificado. Mas ainda era o Joe. Meu magro e belo Joe.
Quis usar o vestido preto que havia comprado para minha festa de aniversário de quinze anos, meu vestido mortuário, mas não cabia mais, então usei um vestido preto liso que ia até o joelho. O Joseph estava com o mesmo terno de lapela fina que havia usado no Oranjee.
Quando ajoelhei, percebi que eles haviam fechado seus olhos, claro que tinham feito isso, e que eu nunca mais veria aqueles olhos verdes.
— Eu te amo no presente do indicativo — sussurrei, e coloquei minha mão no meio do peito dele. — Está tudo bem, Joe. Tudo bem. Está. Está tudo bem, ouviu? — Não tinha, e não tenho, absolutamente nenhuma esperança de que ele pudesse me ouvir. Eu me inclinei para a frente e beijei a bochecha dele. — O.k. — falei. — O.k.
De repente me dei conta de que havia várias pessoas nos olhando, e que, na última vez em que tantas pessoas viram um beijo nosso, nós estávamos na casa da Anne Frank. Mas não havia mais, por assim dizer, um “nós” para se ver. Só um “eu”.
Abri a bolsinha, enfiei a mão nela e tirei de lá um maço de Camel Lights. Num gesto rápido, que, eu esperava, ninguém atrás de mim ia reparar, enfiei-o no espaço entre o corpo dele e o forro de plush prateado do caixão.
— Você pode acender esses — sussurrei. — Não vou me importar.

* * *

Enquanto eu falava com ele, a mamãe e o papai haviam se deslocado para a segunda fileira de cadeiras com meu cilindro, para que eu não tivesse de andar muito ao voltar. O papai me deu um lenço de papel quando me sentei. Assoei o nariz, ajeitei os tubos nas orelhas e reinseri os cateteres nasais.
Achei que iríamos até o santuário propriamente dito para a cerimônia, mas tudo aconteceu naquela pequena sala lateral, a Mão Literal de Jesus, acho — a parte da cruz na qual ele fora pregado. Um pastor se posicionou atrás do caixão, quase como se o caixão fosse um púlpito, e tal, e falou um pouco sobre como o Joseph havia enfrentado uma batalha corajosa e como o heroísmo dele diante da doença foi uma inspiração para todos nós, e eu já estava começando a ficar irritada com o homem quando ele disse: “No paraíso, o Joseph vai, finalmente, ser curado e ficar inteiro”, o que implicava que ele tinha sido menos inteiro que as outras pessoas por lhe faltar uma perna, e eu meio que não consegui evitar um suspiro de repulsa. Meu pai colocou a mão na minha perna, logo acima do joelho, e me lançou um olhar de desaprovação, mas da fileira logo atrás de mim alguém resmungou perto do meu ouvido, tão baixo que quase não deu para escutar:
— Quanta baboseira, hein, garota?
Eu me virei.
O Peter Van Houten usava um terno de linho branco, feito sob medida para abarcar sua rotundidade, uma camisa azul-claro e uma gravata verde. Parecia que estava vestido para uma ocupação colonial do Panamá, não para um enterro. O pastor falou:
— Oremos. Mas enquanto todo mundo baixava a cabeça, eu só conseguia olhar boquiaberta para aquela visão do Peter Van Houten.
Depois de alguns segundos, ele sussurrou:
— Temos de fingir que estamos orando — e baixou a cabeça.
Tentei tirá-lo da cabeça e só rezar para o Joseph. Decidi prestar atenção ao que o pastor estava falando e não olhar para trás.
O pastor chamou o Nicholas, que estava muito mais sério do que no pré-enterro.
— O Joseph Jonas era o prefeito da Cidade Secreta de Cancervânia, e ele não é substituível — o Nicholas começou. — Outras pessoas poderão contar histórias engraçadas sobre o Joe, porque ele era um cara engraçado, mas vou contar uma história séria: um dia depois de arrancarem meu olho, o Joe apareceu no hospital. Eu estava cego, com o coração partido e não queria fazer nada. Ele entrou como um furacão no meu quarto e gritou: “Trago ótimas notícias!” E eu falei, tipo: “Não estou a fim de ouvir ótimas notícias agora”, e o Joe disse: “Essas são ótimas notícias que você vai querer ouvir”, e perguntei para ele: “Tá, o que é?”, e ele respondeu: “Você vai viver uma vida boa e duradoura cheia de momentos maravilhosos e terríveis que você ainda não tem nem como imaginar como serão!”
O Nicholas não conseguiu continuar, ou então aquilo era tudo o que tinha escrito.

* * *

Depois que um amigo da escola contou algumas histórias sobre os talentos consideráveis do Joe no basquete e suas muitas qualidades como companheiro de equipe, o pastor disse:
— Agora vamos ouvir algumas palavras de uma amiga especial do Joseph.
Amiga especial?
Algumas risadinhas foram ouvidas entre o público presente, então achei que não haveria problema se eu começasse dizendo para o pastor:
— Eu era a namorada dele.
Aquilo provocou algumas risadas. E então comecei a ler o papel com o elogio fúnebre que eu tinha escrito.
— Há uma citação muito boa na casa do Joe, uma que tanto ele quanto eu achamos muito reconfortante: Sem dor, não poderíamos reconhecer o prazer.
Prossegui citando vários Encorajamentos de merda enquanto os pais do Joe, de braços dados, se abraçavam e anuíam com a cabeça a cada palavra. Cheguei a uma conclusão: cerimônias como essa são para os vivos.

* * *

Depois que a Julie, a irmã dele, falou, a cerimônia foi encerrada com uma oração que falava sobre a união de Joe com Deus, e aí eu pensei no que ele tinha dito no Oranjee, que não acreditava em mansões e harpas, mas que acreditava, sim, em Algo com A maiúsculo, então tentei imaginá-lo em Algum lugar com A maiúsculo enquanto rezávamos, mas mesmo naquele momento não consegui me convencer direito de que nós dois ficaríamos juntos de novo. Eu já conhecia muitas pessoas mortas. Sabia que agora o tempo passaria para mim de um jeito diferente do que passaria para ele. Que eu, como todas as pessoas naquele ambiente, seguiria acumulando amores e perdas enquanto ele, não. E para mim aquela era a tragédia final e verdadeiramente insuportável: como todos os inumeráveis mortos, ele havia sido, de uma vez por todas, rebaixado de assombrado para assombração.
E aí um dos cunhados do Joe havia levado um aparelho de som portátil e eles botaram para tocar uma música que o Joe havia escolhido: uma canção triste e lenta do The Hectic Glow chamada “The New Partner”. Sinceramente, tudo o que eu queria era ir para casa. Eu não conhecia quase nenhuma daquelas pessoas, e podia sentir os olhinhos do Peter Van Houten olhando detidamente para meus ombros expostos, mas, depois que a música terminou, todos tiveram de vir até mim e me dizer que o que eu falei foi lindo e que aquela tinha sido uma cerimônia adorável, o que era mentira: aquilo era uma cerimônia de enterro. E se parecia com qualquer outra cerimônia de enterro.
Os carregadores do caixão dele — alguns primos, o pai, um tio, amigos que eu nunca tinha visto — se aproximaram e o seguraram, e todos começaram a andar na direção do carro funerário.
Quando mamãe, papai e eu entramos no carro, falei:
— Não quero ir. Estou cansada.
— Demetria — mamãe disse.
— Mãe, não vai ter lugar para sentar, vai durar horas e eu estou exausta.
— Demetria, nós temos que ir pelo Sr. e pela Sra. Jonas — mamãe argumentou.
— É só que… — falei.
Eu me senti muito pequena no banco traseiro do carro, por algum motivo. Eu meio que queria ser pequena. Queria ter seis anos ou coisa parecida.
— Tá bem — falei.
Fiquei só olhando pela janela por um tempo. Eu realmente não queria ir. Não queria vê-los baixando o Gus para debaixo da terra, no local que ele havia escolhido com o pai; não queria ver os pais dele caindo de joelhos na grama úmida de orvalho e gemendo de dor, não queria ver a barriga alcoólatra do Peter Van Houten estufada no terno de linho, não queria chorar na frente de um monte de gente, não queria jogar um bocado de terra na sepultura dele, não queria que meus pais tivessem que ficar ali debaixo daquele céu azul e límpido com a luminosidade do entardecer e sua certa obliquidade, pensando que chegaria o dia deles, o da filha deles, do meu lote, do meu caixão e da minha terra.
Mas fiz tudo isso. Tudo isso e muito mais, porque mamãe e papai achavam que devíamos.

* * *

Assim que terminou, o Van Houten andou até onde eu estava, colocou a mão gorda no meu ombro e disse:
— Posso pegar uma carona com você? Deixei meu carro alugado lá no pé da ladeira.
Dei de ombros e ele abriu a porta de trás na mesma hora em que meu pai destrancou o carro.
Lá dentro, ele se inclinou entre os bancos da frente e disse:
— Peter Van Houten: Romancista Emérito e Desapontador Semiprofissional.
Meus pais se apresentaram. Ele os cumprimentou com um aperto de mão. Eu estava bastante surpresa pelo fato de o Peter Van Houten ter voado meio mundo para comparecer a um enterro.
— Como é que você…. — comecei, mas ele me cortou.
— Utilizei sua Internet infernal para acompanhar o obituário de Indianápolis. — Ele colocou a mão dentro do terno de linho e tirou de lá uma garrafa de uísque de 750 ml.
— E simplesmente comprou uma passagem de avião e…
Ele me interrompeu de novo enquanto desenroscava a tampa.
— Paguei 15 mil por uma passagem de primeira classe, mas sou suficientemente capitalizado para me dar a esses luxos. E as bebidas no voo são de graça. Dependendo da sua ambição, dá quase para ficar no zero a zero.
O Van Houten deu uma golada no uísque e depois chegou o corpo para a frente, a fim de oferecê-lo ao meu pai, que reagiu dizendo:
— Ah, não, obrigado.
Em seguida, o Van Houten fez um gesto com a garrafa na minha direção. Eu a segurei.
— Demetria — minha mãe disse, mas eu desenrosquei a tampa e bebi um pouco. Aquilo fez meu estômago se sentir como meus pulmões.
Entreguei a garrafa de volta para o Van Houten, que entornou um bocado para dentro e falou:
— Então. Omnis cellula e cellula.
— Hein?
— Seu namorado Jonas e eu nos correspondemos um pouquinho, e em sua última…
— Peraí, você lê cartas de fãs agora?
— Não, ele mandou a carta para a minha casa, e não através do meu editor. E eu não poderia chamá-lo de fã. Ele me desprezava. Mas, de qualquer forma, ele insistiu muito no fato de que eu seria absolvido de meu mau comportamento se comparecesse ao enterro dele e dissesse a você o que acontece com a mãe da Anna. Então, aqui estou, e eis sua resposta: Omnis cellula e cellula.
— O quê? — perguntei de novo.
— Omnis cellula e cellula — ele falou mais uma vez. — Toda célula procede de outra célula. Toda célula nasce de uma que a antecede, que se formou a partir de uma anterior. A vida procede da vida. Vida gera vida gera vida gera vida gera vida.
Chegamos ao pé da ladeira.
— Tá. Então tá — falei.
Eu não estava com disposição para aturar aquilo. O Peter Van Houten não ia desviar todas as atenções para ele no enterro do Joe. Eu não o deixaria fazer isso.
— Obrigada — falei. — Bem, acho que já chegamos à base da ladeira.
— Você não quer ouvir uma explicação para isso? — ele perguntou.
— Não. Estou satisfeita. O que eu acho é que você é um alcoólatra patético que fala coisas difíceis para chamar a atenção como se fosse um garoto de onze anos precoce, e eu sinto muita pena de você. Mas, pois é, não, você não é mais o cara que escreveu Uma aflição imperial, por isso não poderia escrever a continuação dele mesmo se quisesse. Mas obrigada, mesmo assim. Tenha uma vida excelente.
— Mas…
— Obrigada pelo goró — falei. — Agora saia do carro.
Ele estava com aquela expressão de criança sendo repreendida. O papai havia parado o carro e nós ficamos ali parados abaixo do túmulo do Joe por um minuto até que o Van Houten abriu a porta e, finalmente em silêncio, saiu.
Enquanto nos afastávamos com o carro, olhei pela janela traseira e o vi dar um gole na bebida e levantar a garrafa na minha direção, como se estivesse brindando a mim. Os olhos dele estavam muito tristes. Tive um pouco de pena, para ser sincera.

* * *

Por fim, chegamos de volta à nossa casa perto das seis, e eu estava exausta. Só queria dormir, mas mamãe me fez comer um pouco de macarrão com queijo. Pelo menos ela deixou que eu comesse na cama. Dormi algumas horas com o BiPAP. Acordar foi um horror, porque, por um momento de desorientação, tive a sensação de que tudo estava bem, mas logo depois me senti sendo esmagada de novo. Mamãe me tirou do BiPAP, eu me conectei a um cilindro portátil e segui aos trancos e barrancos até o meu banheiro para escovar os dentes.
Ao me olhar no espelho enquanto escovava os dentes, fiquei pensando que existiam dois tipos de adultos: os Peter Van Houtens — criaturas desprezíveis que varriam a Terra à procura de algo a que magoar, e pessoas como meus pais, que andavam de um lado para outro como zumbis, fazendo o que quer que tivessem de fazer para continuar andando de um lado para outro.
Nenhum desses futuros me pareceu particularmente almejável. Eu me sentia como se já tivesse visto tudo o que há de mais puro e bom no mundo e começava a suspeitar de que, mesmo se a morte não tivesse atrapalhado o andar da carruagem, o tipo de amor que eu e o Joseph compartilhamos não teria durado. Assim a aurora se transforma em dia, o poeta escreveu. Nada que é dourado fica. Alguém bateu na porta do banheiro.
— Está ocupado — falei.
— Demetria — meu pai disse. — Posso entrar?
Não respondi, mas depois de um tempo destranquei a porta. E me sentei no vaso sanitário com a tampa fechada. Por que o ato de respirar precisava ser tão trabalhoso? Papai se ajoelhou ao meu lado. Ele segurou minha cabeça, puxou-a até encostar no ombro dele, e disse:
— Sinto muito pela morte do Joe.
Eu me senti meio que sufocada pela camisa de malha dele, mas a sensação de ser segurada com tanta intensidade era boa demais, aninhada no cheiro familiar do meu pai. Era quase como se ele estivesse com raiva ou coisa assim, e gostei disso, porque eu também estava.
— É tudo uma grande palhaçada — ele disse. — A coisa toda. Uma taxa de sobrevivência de oitenta por cento e ele está nos vinte por cento? Palhaçada. Ele era um garoto tão brilhante! É uma palhaçada. Odeio isso. Mas com certeza foi um privilégio poder amar o Joe, não foi?
Fiz que sim com a cabeça, encostada na camisa dele.
— Isso lhe dá uma ideia de como me sinto em relação a você — ele disse.
Meu velho e amado pai. Sempre sabia a coisa certa a dizer. 

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